– Celso, meu filho… Você pode vir aqui, por favor?

O homem arregalou os olhos. Não era sempre que o Sr. Souza tinha momentos de lucidez a ponto de se recordar do nome de um dos cuidadores. Soltou a parafernália que organizava e correu para o quarto do senhor de seus oitenta e poucos anos.

O quarto era padronizado como tantos outros daquela clínica. Paredes azuis, com o teto de gesso branco com detalhes arquitetônicos gregos. A cama ficava ao centro do lado esquerdo, de um lado dela, os aparelhos para qualquer urgência, do outro um criado mudo e um armário com os pertences dos pacientes. Celso pensava como aquela era a única parte do quarto onde havia qualquer sinal simbólico de seus ocupantes. Já fazia longos 5 anos, que o Sr. Souza estava ali. Mas o homem era simples e não tinha tanto apego a coisas. Algumas imagens bem pequenas de orixás enfeitavam o criado mudo, junto com as flores que o velho homem recebia sempre. E que ele jurava que nunca eram pra ele, mas sim para seus guias e os donos de seu “ori”. Um cacto de tamanho mediano, um quadro de sua juventude com vária pessoas que, por conta do Alzheimer nem se recordava direito, três livros – Kardec, Tolkien e Sparks – e o diário, junto à fiel caneta.

– Diga, seu Lucas! – Os olhos vivos e cintilantes que contrastavam com a pele negra se voltaram para ele. Se era possível olhos sorrirem, aquele senhor era a prova.

– Não faço ideia do que me deram ontem, mas hoje acordei com a mente borbulhando. Você trouxe seu computador?

Fazia uns 5 meses que estavam trabalhando num projeto. O resgate das poucas memórias sãs que o velho ainda tinha. Haviam feito um acordo, que se ele não lembrasse de tudo, Celso poderia preencher as lacunas com suas próprias interpretações e publicar o livro.

Os médicos estavam surpresos com a quantidade de detalhes que o homem confidenciava para o enfermeiro. Afinal, após verificarem o material, acharam que era fruto da imaginação junto a fragmentos de memória. Não era possível que essas histórias pudessem ser verdade. O homem já estava num estado de esquecimento avançado. Não recordava dos filhos, de muitos amigos, nem de nada sobre sua vida recente.

– Trouxe, sim. O senhor quer que eu pegue?

– Por favor, meu jovem. Lembrei de uma briga séria, que tem muito a ver com a nossa separação.

O contraste na lucidez e nos momentos de esquecimento era evidente até na voz. O velho era mais eloquente e, de fato, era outro que não aquele mais comum que vivia em estado letárgico.

– Só um instante! Volto já

 

A história do homem era confusa porque não haviam datas, ou uma linha do tempo coerente. Celso apenas percebia – e seus olhos marejavam toda vez que pensava sobre isso – que a mente do homem abriu mão de todas as outras lembranças para guardar em conchas no fundo do mar do seu inconsciente retalhos de uma história de amor.

Aos vinte e tanto, havia conhecido um homem pelo qual se apaixonara. Tiveram vários anos de uma relação de dar inveja. Mas que havia chegado ao fim, por alguma razão ainda não recordada. Com o idoso, o enfermeiro percebeu nuances sobre o amor que poucas pessoas tiveram.

“- Éramos plenos, um com o outro. Mas é preciso saber que uma relação à dois sempre será a três. Você será um, seu parceiro, ou parceira, outro e o que vocês têm… Esse sentimento que os une. Será outra parte do relacionamento. E a relação sempre será boa enquanto duas partes cuidarem de uma. Sem isso, a plenitude mingua como a lua. E vocês voltam a ser dois. Ainda plenos, mas não totalmente.”

Foi esse pensamento que salvou seu noivado, redirecionou sua forma de lidar com sua noiva e mudou sua visão de mundo. Dias depois, o velho voltou a falar sobre plenitude. Dessa vez a criticando. Afinal, o que se pode desejar quando se é pleno? É preciso a insatisfação, falhas e desconforto, para que se deseje algo. Não ser pleno é o que instiga vontades. E sem vontades a vida se estagna.

“- É por isso que as pessoas tem medo de relações. A plenitude se torna monótona com o tempo. Casos surgem… E qualquer situação que provoque instabilidade também. Pois o ser humano precisa as incertezas da vida, da possibilidade de ser pra se sentir vivo. A plenitude é quase como a morte.”

Era engraçado como esses pensamentos surgiam para ele. Sempre acompanhados de histórias curtas. De como o seu namorado era um espírito livre que abdicou por um tempo da liberdade para viver com ele.

“- Eu nunca fui um ser livre, Pedro. Sou negro, gay – Isso lhe deixa desconfortável? Certo, filho. – E sempre vivi à margem da sociedade. Para nós, qualquer ínfima oportunidade deve ser agarrada com tudo. Não podemos deixa-la passar. Porque não é todo dia que um negro sente a plenitude de ser um cuidado por dois. Não é todo dia, que um negro, sequer tem liberdade de ser pleno por si mesmo. Fui um dos poucos a ter a sorte de viver o que vivi.”

Celso, que era Pedro, que era Marcos, que era Douglas e tantos outros, gravava toda sua conversa com o homem e as transcrevia quando chegava em casa. Não se atrevia a colocar e nem tirar qualquer que fosse o detalhe. Duvidou até da própria sexualidade ao se excitar com o homem narrando suas experiências.

“- Você não é gay, filho. E todo seu potencial bissexual está guardado enquanto amar  essa menina, não se preocupe. É que quando o sexo vem acompanhado de amor, a coisa é muito mais densa, pura e expansiva. A gente se excita pensando na pessoa comendo, se excita com o bafo dela, com o seu cheiro natural. Não apenas com o corpo e a fricção entre eles. O que nos excita vai além. E todo mundo reconhece isso. Por isso você se excita. Seu corpo e espírito reconhecem o prazer transcendental das minhas histórias.“

Fazia sentido.

Celso voltou para o quarto com o laptop aberto já configurando o microfone. O homem estava mexendo no cacto, o recepcionou com o mesmo sorriso dos olhos.

– É preciso estar atento aos sinais, meu jovem. Você lembra qual foi o primeiro presente que deu à sua namorada? Lembra qual o primeiro que recebeu? O meu primeiro presente dele foi esse cacto. Obviamente, não este. Mas a matriz dele. A única coisa que venho cultivando através dos anos. – O homem sentou na cama – Ele amava cactos. Ter me dado um foi um sinal importante para mim, e que afetou completamente a minha vida. Primeira porque foi quando ele me deu o sinal de quem ele era. Ele era como um cacto. Resistente às situações mais duras, ainda sendo frágil. Com uma aparência bela, ornamental, mas com espinhos em evidência que protegiam sua fragilidade. Não me recordo o que dei a ele, mas creio que foi alguma coisa da nossa religião. Onde também deixei claro quem eu era.

O enfermeiro olhou para as imagens. Era católico não praticante, e não tinha muita crença na Umbanda, Candomblé e o que quer que fosse. Mas pelo que os visitantes falavam de Sr. Souza, o homem era uma lenda para a sua religião e para o seu terreiro. Os feitos e fama dele chegavam a todos os cantos. Por isso, a doença foi um grande pesar não só para família. Mas também para seus filhos-de-santo. Com as memórias dele estava desaparecendo uma tradição.

– A nossa relação já estava no fim, de novo. Era perceptível isso. Eu sabia que algo estava errado. E já não bastava todos os espinhos dele fincados na minha pele, sempre apareciam mais. Amar cactos é uma coisa dolorosa, meu jovem. Não fuja deles, mas também não os abrace muito forte.

Ele riu e seus olhos ficaram opacos. Sua alma não estava ali mais, estava de volta ao passado. E continuou:

– Num determinado momento. Que não sei se foi de loucura, ou de lucidez. Decidi acabar com tudo. Eu tinha uma certeza dentro de mim de que era o necessário a ser feito. E o fiz. Terminei tudo com ele. E pedi aos meus orixás que me fizessem esquecer de tudo o que tínhamos vivido, todos os espinhos, todas as lembranças, tudo o que sentíamos um pelo outro. Pedi mais para atingi-lo com a minha dor, do que com a real intenção de esquecer. E o que os orixás me deram?

A pergunta era retórica. Pedir às forças divinas para esquecer de alguém e esquecer de tudo, menos desse alguém. A vida não era justa com esse homem.

– Depois disso nos distanciamos. E era um martírio viver daquele jeito. Por mais que eu tenha encontrado forças para persistir, tudo me lembrava ele. Então, antes que mentalmente você esteja julgando minha Mãe Iemanjá e meu Pai Oxalá por terem me castigado. A coisa foi mais profunda. Dediquei-me por tanto tempo junto a nossa plenitude a cuidar dele, que tudo para mim lembrava ele. Músicas, perfumes, comidas, lugares, situações. Mesmo palavras em determinados tons me traziam o cheiro do peito dele para as minhas narinas, os olhos dele refletindo os meus… Tudo tinha resquícios dele. Então eu tinha de perder tudo. Mas além de todas as coisas ao meu redor, também havia muito dele em mim. E para esquecê-lo, eu também teria de me esquecer de mim. Tive romances, paixões e casos depois disso… Mas nada cumpria a promessa que todos me davam que com o tempo a gente esquece e que com o tempo o sentimento vira outro. E talvez fosse verdade. Mas o culto do sentimento virar outro era eu mesmo me tornar outra pessoa. O que é irônico. As pessoas sempre nos dizem para não mudarmos por conta das pessoas que nos relacionamos. Mas para deixa-las partir, nós temos que mudar.

Ele deu uma parada, a voz estava embargada. Celso já tinha o já conhecido nó no peito.

– Então eu esqueci de mim. Essa doença maligna me tomou o cérebro, roubou todo o meu passado e hoje, acredito que nesses momentos que acordo e te falo essas coisas, quem te fala na verdade é a terceira pessoa da plenitude. Porque ela nunca foi embora. E ela foi esperta, não se guardou apenas na minha mente. Mas em todo meu corpo, células e principalmente coração. Pergunto quais as lições que vou pedir para os Espíritos de Luz me ensinarem na próxima reencarnação. Já lhe contei que meu caso com o homem cacto é de outras vidas não falei? Me pergunto quando é que vamos finalmente acertar os pesos e medidas de nossa liberdade e de nosso comprometimento. Uma coisa é certa, nunca mais pedirei para esquecer de nada. Porque assim poderei sofrer a partida dele sem medo, e talvez seja isso que fez com que ele se sentisse preso e partisse no final de tudo.