Algumas pessoas estranham sempre que falo sobre a minha espiritualidade/religiosidade. Afinal, como pode um negro que se diz afrocentrado não praticar uma religiosidade afro? E pior! Como pode esse mesmo negro praticar uma religiosidade eurocêntrica?
Muitas das respostas que eu obtive são oriundas de reflexões da minha própria vivência como negro que sofreu embranquecimento da infância à adolescência. Outras são vindas das vivências sacerdotal, espiritual e ancestral. Aparentemente uma coisa só, mas não é bem assim.
Baseado nesses pontos, decidi fazer paralelos entre a divindade e o orixá que tenho mais ligações e falar sobre meu culto pessoal, ancestral e oficial. Vai ser interessante, e garanto que bonito.
Umbanda – Ancestralidade direta
Meu pai, negro retinto, sempre foi beato católico. Não sei exatamente em que ponto da vida ele começou a frequentar o Umbanda, só sei que desde que me entendo por gente, minha vida religiosa foi dentro de terreiros, vendo minha mãe (que seguiu a fé mista do meu pai) incorporar e eles cumprindo de forma superficial as obrigações.
Simultâneamente, pela realidade cristã brasileira, o catolicismo era outro viés (superficial) da minha vida. Acreditava no Deus Abraamico, Jesus Cristo e santos e santas, ao mesmo tempo que reverenciava Orixás e entidades da Jurema/Candomblé. Dessas entidades destaco cinco: duas ligadas a meu pai, duas a minha mãe e uma que foi atribuída a nós para proteção.
Aos 11 anos, descobri os fardos de ser negro retinto, ser gay e ser pobre e tive depressão. Rejeitei a religiosidade cristã que condenava a minha sexualidade e por temer que as entidades revelasse que sou gay aos meus pais (uma tinha já dado a entender que sabia) me afastei dos terreiros também.
Todavia, eu sempre senti uma fagulha mediúnica em mim. E mais que isso: sempre senti um chamado espiritual e da magia muito forte. Só que pelos meus medos e por preconceito, eu nunca explorei a fé afro de forma submersível.
Wicca/Wanen – Sacerdócio
Acabei direcionando tudo isso para a Wicca, que conheci no mesmo período dos surtos depressivos quase fatais. Nela, eu descobri outro sentido de vida, onde eu podia viver minha sexualidade, minha verdade, minha rebeldia e todas as minhas ânsias espirituais eram parcialmente saciadas.
Parcialmente porque a Wicca foi parte de um processo transicional. Passei por todo o processo iniciático até me tornar Sumo-sacerdote de um Coven (grupo de bruxos), mas a sensação de que algo faltava estava ainda lá. E por isso/com isso, ela foi porta para que eu conhecesse Wagner Perico aos meus 16 anos.
Com o Wagner, conheci a Wanen, uma Tradição de Bruxaria Germânica. Nela eu descobri minha vocação sacerdotal, e passei por um processo de renascimento espiritual durante 12 anos da minha vida.
A Wanen tem muita similaridade com o Candomblé. Assim como nele, que cada pessoa tem uma ligação direta com um Orixá, na Wanen temos nossa essência ligada a uma divindade. Essa ligação é essencial e imutável. Então não importa quantas vidas eu já tenha tido e quantos tipos de fé eu professei, eu sempre fui ligado a mesma energia divina.
No meu caso, sou ligado a Mardöll (mardól, significa ‘aquela que brilha sobre o mar’), principal divindade e líder dos Deuses Wanen. Ela é mais conhecida pelo nome Freyja (lê-se: Fráia)/Freya/Fréia. E é basicamente retratada e cultuada como uma Vênus/Afrodite nórdica. Na Wanen essas nuances e visões mudam, inclusive os mitos são reinterpretados.
Mardöll é uma Deusa de muita abrangência. Poderia fazer diversos paralelos com várias divindades. Mas vou resumir ela da forma mais simples e por palavras-chave.
– Criação
– Beleza
– Magia
– Guerra
– Amor
Culto Afro – Ancestralidade Negra
Entre 2017 e 2018, eu completei o primeiro ciclo iniciático da Wanen. Saí do “Iniciante” para me tornar “Iniciado” e um dos processos guiados por essa iniciação foi o de resgate à minha Ancestralidade. Literalmente, todos os 9 Deuses principais da Wanen estavam me mandando buscar minha ascendência Negra.
Fui. E assim como ouvi muitas vezes as pessoas dizerem, muitos dos pais e mães de santo com quem tive contato diziam sentir que eu tinha uma energia muito ligada a Oxum, mas também similar a Logun Edé.
Na minha cabeça fazia sentido que eles interpretassem dessa forma. Inclusive, um grande amigo candomblecista, pelos buzios verificou essa “energia de Oxum” só que sentia que era uma Oxum diferente. Expliquei sobre Mardöll e as similaridades e ele achou engraçado.
Fiquei certo que num nível para além do cultural e do nome que se dá às energias divinas eu tinha uma ligação com essa questão da Beleza, da Magia e dos Nascimentos que tanto Oxum quanto Mardöll possuem. Era minha essência, então fazia sentido que ela fosse lida diferente pela realidade subjetiva de cada um.
Foi então que uma mãe de santo saiu dessa leitura e viu que Xangô e Iansã “brigavam pelo meu ori”. Estes são os orixás dos meus pais e segundo ela, eles cobravam culto. Ela não sabia, mas já faziam no mínimo 8 anos que meus pais não frequentavam a Umbanda e negligenciaram tudo.
Por razões que não vem ao caso, me vi obrigado a aprender de forma superficial sobre como cuidar daquelas entidades que falei no começo e a prestar um culto simplório aos Orixás dos meus pais. O que cessou a “briga” e trouxe meu contato espiritual com minha Ancestralidade a um outro patamar.
Enfim, essa explicação toda foi pra dizer que:
1. Oficialmente e prioritariamente, meu Sacerdócio é Wanen, focado em Mardöll e nas divindades Wanen.
2. Tenho um culto de Ancestralidade ligado a esses três Orixás (Oxum, Iansã e Xangô). Nada que desrespeite ou me faça candomblecista. Mas os cultuo e presto as oferendas que me foram sugeridas pelos pais/mães de santo.
3. Tenho um terceiro culto pessoal ligado às entidades da Jurema/Umbanda. Que seriam despachadas, por conta da negligência de anos dos meus pais. Todavia, uma delas, a qual sou mais ligado, sugeriu que queria ser cuidada por mim. Quando aceitei, todas vieram no bolo. E muitas, alguns amigos candomblecistas, disseram se tratar de ancestrais que se apresentaram daquela forma. Por isso, buscaram se ligar a mim.
É ainda complexo, mas como falei, a ciência da realidade subjetiva me fez ampliar minhas leituras sobre o que é cultural, o que é sagrado, o que é divino e o que é espiritualidade supérflua.
Não me considero afrocentrado no âmbito da religiosidade, pois minha forma de contato ainda é eurocêntrica. Mas me vejo, ainda que de forma simplificada, ligado a minha Ancestralidade.