A Sombra é um dos arquétipos junguianos mais fascinantes. Ela está, para além de todos os arquétipos,  relacionada com o Inconsciente Individual ou Pessoal e o Inconsciente Coletivo. 

Enquanto o primeiro é onde ficam armazenados todas as informações, traumas, medos e lembranças que captamos desde o nascimento até a morte (normalmente fazendo trocas simultâneas com a nossa consciência), o segundo seriam nossos conhecimentos e impressões de mundo que recebemos de forma hereditária. As coisas que ninguém precisou explicar para você entender genuinamente. Como uma criança saber que o Velho do Saco é perigoso e o Papai Noel não, por exemplo.

A Sombra, por sua vez, é o nosso lado instintivo, nossos desejos, vontades mais intrínsecas e o nossa selvageria, o nosso Eu sem filtro social. Étambém responsável por nossa criatividade. É dela que extraímos nossos impulsos mais genuínos e criamos pensamentos com ele.

Essa tríade é a principal responsável por nosso instinto de sobrevivência. É a conversação entre esses arquétipos que categoriza nossos filtros subliminares de convivência. É por ela que se formam os preconceitos, desejos, aspirações, formas de defesa e ataque. Preconceitos nada mais são do que nosso dispositivo de sobrevivência mais primário. Nós primeiro tememos algo, por uma análise superficial, e depois de uma experiência é que definimos um conceito sobre ele.

No nosso Inconsciente Coletivo estão armazenados diversos preconceitos históricos, velados e enraizados na nossa cultura, e por consequência, na forma que a tríade citada vai lidar com eles. Exemplo pratico de um preconceito coletivo? O Racismo. No Inconsciente Pessoal, a partir da nossa vivência é definida como lidamos com este preconceito. No caso de uma pessoa negra, normalmente sua experiência com o Racismo é negativa, pois ele é alvo desse preconceito, sofre todas as represálias disto. Uma pessoa branca está – por conta do Racismo Estrutural e sua hierarquia – imune aos efeitos negativos do Racismo, e ainda ganha uma posição dominante, opressora e cheia de privilégios.

Porém, ainda é preciso elaborar mais sobre a Sombra, mais precisamente sobre o seu efeito, antes de explorar mais o Racismo.

Deepak Chopra, Debbie Ford e Marianne Williamson escreveram um excelente livro chamado “O Efeito Sombra” que além de explorar a Sombra, vala das variadas formas que ela influencia na nossa vida. Além do livro, há no Youtube, um documentário igualmente didático com o formato de uma palestra sobre o conteúdo do livro.

A Sombra é nossa parte selvagem. E uma analogia possível de ser feita com esta característica dela é a do animal feroz.

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Imaginem um animal feroz, que nós mantemos acorrentado em frente a nossa casa. Muitas coisas passam na rua e incitam esse animal das mais diversas formas. Umas deixam ele com tesão, com desejo, outras deixam ele criativo, inspirado, com raiva, com um instinto assassino… Enfim, vários são os dispositivos que a sociedade tem que instigam reações à nossa Sombra.

Por saber que nosso animal é muito impulsivo, e que isso pode ser perigoso em algumas situações (principalmente para as coisas que incitam-lhe raiva), nós tendemos a diminuir o tamanho da corrente dele, prendê-lo com mais força, e deixá-lo com menos espaço onde possa trafegar em paz.

Tal postura tende a ir alimentando cada vez mais sua raiva, sua libido, sua ânsia até o ponto que o animal fica tão sobrecarregado e isso lhe dá tanta força que ele quebra a corrente, se liberta e busca imediatamente o alvo de sua sina. Sacia-se de seu tempo em abstinência e retorna para o seu espaço, para sua prisão.

Este é um resumo bem básico e superficial do Efeito Sombra. Mas o que é que isso tudo tem a ver com o Cocielo e com o Racismo Velado?

O Cocielo, assim como 100% dos Brasileiros, recebeu ainda na infância uma cultura extremamente racista. Muitas vezes de forma não intencionada, as crianças adquirem os tais preconceitos hereditários do nosso Inconsciente Coletivo. Afinal, o Racismo está na TV, está na nossa língua, está em tudo que nos cerca de formas claras e objetivas e também de formas subliminares e “inofensivas”.

A Sombra do Cocielo incorporou para si o Racismo e, por ele ser lido como branco, sendo assim privilegiado, tem os negros como uma espécie de gatilho. Talvez, não seja a intenção dele, mas sempre que ele se vê numa situação com pessoas negras, por questão de reprodução e sua veia cômica, a Sombra dele tende a instintivamente ser racista. Afinal, nossa sociedade, sempre que pôde, fez (e ainda faz) piadas racistas. Isso foi motivo de graça por muito tempo. Por tanto tempo, que se tornou o Racismo velado, inconsciente e invisível para muitos.

Com o advento do emponderamento, politização e conscientização dos Movimentos Negros, do politicamente correto e da era da problematização, o Racismo velado e os dispositivos que racistas tinham pra destilar seu ódio e opressão tem ficado cada vez mais escassos. Eles estão evitando externalizar o Racismo. Porque sabem que a represália tem sido imensa, certeira, como nunca havia sido.

Percebam que evitar externalizar não é deixar de ser racista. Ainda existem e persistem todas as tensões, gatilhos e impulsos cada vez mais abafadas no interior de um racista.

São tantas repressões que a corrente do animal feroz está ficando mais curta, nem rosnar ele pode mais.

Neste processo, a Sombra, que tem o Racismo Velado incorporada, vai sublimando os impulsos racistas reclamando das problematizações, acusando de vitimismo e tantas outras formas de opressão racistas indiretas. Por esta razão, conscientemente, Cocielo, e demais racistas como ele, não se veem como racistas. Afinal ele não ataca nenhum negro, só se sente incomodado por não ver a liberdade de expressão sendo praticada.

Entretanto, sempre quando está num ambiente que sabe que não terá represálias, libera o animal feroz e se permite ser racista. Como aquela musica de Capital Inicial: “O que você faz quando ninguém te vê fazendo. Ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver”. Numa roda de amigos, igualmente privilegiados ou por traz de um perfil fake de uma rede social… Vários são os remédios que racistas utilizam para destilar seu ódio.

A Sombra, por sua vez, não se dá por satisfeita com essas escapadinhas. Não lhe satisfaz apenas ser racista entre outros racistas porque o Racismo acima de tudo é uma relação de poder e opressão. Não satisfaz a libido de um racista demostrar-se poderoso entre outros iguais, ele quer oprimir quem ele considera inferior. E é nesse momento que ocorre o Efeito Sombra.

Sempre em momentos de descontração, como numa partida da Copa do Mundo, um racista que silenciou seu racismo por tanto tempo, vê um negro super rápido e em milésimos de segundos, unindo seu inconsciente individual, o coletivo e sua sombra espumando de desejo em se libertar ele mete os pés pelas mãos.

Vai buscar na coletividade o velho verbete “Negro parado é suspeito e correndo é ladrão”.

No seu inconsciente individual, onde ele já viu diversas vezes na TV e sendo reproduzido por muitas outras pessoas que um arrastão é uma atividade de bandido, e comumente, esses bandidos são negros.

E pronto.

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Temos o tweet polêmico. A fuga da Sombra.

A quebra da corrente do animal feroz que Cocielo havia criado com tanto cuidado.

Fosse algo de momento, uma falha, como ele alegou, o primeiro reflexo do dito cujo seria se desculpar, reconhecer o erro e buscar uma reparação para tal. Mas instintivamente, ele ocultou o rastro daquele acontecimento, negou a ferro e fogo o comportamento que, há vários anos, ele evita demonstrar em público por medo de ser jugado.

Não só apagou o tweet, como passou a ignorar sumariamente a onda de represálias que crescia paulatinamente no Twitter e tomava outras esferas.

Para o azar dele, racistas sempre deixam rastros. Eles precisam mostra-se superiores. E esses rastros estavam no pior lugar possível, a internet. Logo ali, no mesmo Twitter onde tudo começou. Estes rastros foram encontrados e expostos. A Sombra tão bem escondida, num vacilo, havia sido descoberta, exposta. Estava sendo julgada e traria com ela consequências pesadas.

Dessa vez ele precisava se esforçar mais na desculpa. Tentou um pedido padrão, que não convenceu nem a ele mesmo. Mais repercussão, as pessoas queriam que ele pagasse pelo crime que cometeu. Afinal, num contraste absurdo do que sua bolha privilegiada sempre lhe demonstrou, Racismo não é piada, é crime.

Contratos rompidos, tweets apagados para sua situação não piorar, um massacre generalizado e cada vez mais afiado… O que ele deve fazer? Como ele deve reagir? Esperar o tempo de esquecimento da internet? Esperar que com o tempo a poeira baixe e tudo se normalizem? Esperar os amigos do peito virem em defesa dele dizer que ele é um menino de bom coração, um menino do bem, uma pessoa que ajudou várias outras… Não. Isso tudo não invalidou sua Sombra, que não é uma entidade a parte dele. Ela é o que há de mais intrínseco nele, o substrato mais irracional e sem medidas que ele possui. E ela/ele é racista. E esse racista está com raiva de te sido descoberto, exposto e ter sido punido por isso. Ele vai aguardar, com mais raiva e mais rancor outra oportunidade para ser racista de novo. Afinal como ele mesmo desejou…

Por Luan Silva