Postado no RLS em 23/02/2012


Um dos meus textos favoritos de Platão é o Symposium (O Banquete ou O Simpósio). Descobri-o recentemente quando assisti ao filme “Hedwig and the Angry Inch”. O filme narra a história de um(a) transexual que sonhava em ser um(a) famoso(a) cantor(a) de rock. Curioso, até para mim que vos escrevo, lidar com os princípios da Androgenia a partir de um homem que abdicou o seu sexo para se tornar o seu oposto. Se originou de um famoso musical da Broadway.

Dentre os dramas e romances de Hedwig fui surpreendido com a musica “The Origin Of Love”. A letra da música é uma livre adaptação do próprio “Symposium”, do trecho em que ele cita como se originou o Amor, as almas gêmeas e a eterna busca da sua contraparte.

Admito que eu fiquei um pouco chocado com a interpretação da música no filme.

Foi uma mescla de interpretação, símbolos e idéias, que foram de encontro com um profundo e relutante preconceito do qual eu me negava possuir, e que transcenderam minha mente e (re)abriram um tópico importante no meu inconsciente e visão mágica: Androgenia (do grego andrós, aquele que fecunda, o macho, o homem viril; e guynaikós, mulher, fêmea).

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Segundo o texto de Platão, existiam três seres primordiais: o Sol, a Terra e a Lua. Esses três seres criaram seres esféricos com quatro braços e pernas e dois rostos em uma única cabeça. Esses seres, chamados díades, eram poderosíssimos e inspirados em suas energias arquetípicas.

O Sol criou o ser com rostos e genitais masculino. A Terra fez semelhante, o ser tinha as mesmas características, todavia era feminino. A Lua, por sua vez, criou um ser com um diferencial dos outros: as feições e genitálias eram um feminino e outro masculino.

Estes seres circulares (circulo=perfeição) povoaram o mundo, mas ao obterem noção de sua força e poder, acabaram por desafiar os Deuses e escalaram o Monte Olimpo para travar uma batalha com eles. Zeus irritado usou o poder de seus raios para dividir as díades ao meio – assim como a sua força – e as misturou e espalhou pelo mundo. Deixando registrada em suas almas a maldição de que eternamente procurariam sua outra parte.

Diante deste ‘descobrimento’ me vi relendo mentalmente o mito clássico de criação adotado por vários pagãos e tradições mágicas e citado em “A Dança Cósmica das Feiticeiras” de Starhawk:

 “Solitária, majestosa, plena em si Mesma, a Deusa, Ela, cujo nome não pode ser dito, flutuava no abismo da escuridão, antes do início de todas as coisas. E quando Ela mirou o espelho curvo do espaço negro, Ela viu com a sua luz o seu reflexo radiante e apaixonou-se por ele. Ela induziu-o a se expandir devido ao seu poder e fez amor consigo mesma e chamou Ela de “Miria, a Magnjica.

O seu êxtase irrompeu na única canção de tudo que é, foi ou será, e com a canção surgiu o movimento, ondas que jorravam para fora e se transformaram em todas as esferas e círculos dos mundos. A Deusa encheu-se de amor, que crescia, e deu à luz uma chuva de espíritos luminosos que ocuparam os mundos e tornaram-se todos os seres.

Mas, naquele grande movimento, Miria foi levada embora, e enquanto Ela saía da Deusa, tornava-se mais masculina. Primeiro, Ela tornou-se o Deus Azul, o bondoso e risonho deus do amor. Então, transformou-se no Verde, coberto de vinhas, enraizado na terra, o espírito de todas as coisas que crescem. Por fim, tornou-se o Deus da Força, o Caçador, cujo rosto é o sol vermelho, mas, no entanto, escuro como a morte. Mas o desejo sempre o devolve à Deusa, de modo que Ele à Ela circula eternamente, buscando retornar em amor.”

Transcrito do livro ”A Dança Cósmica das Feiticeiras”.

A Deusa citada neste verbete de Starhawk é um ser primordialmente andrógino, uno. Nem masculino nem feminino.  Após, e somente após, reconhecer e amar sua própria beleza é que Ela passa por um processo de dicotomia e se faz a Deusa e o Deus.

Seguindo a linha dos surgimentos, logo após surgir os dois arquétipos masculino/feminino e polaridades ativa/passiva dentre outras polaridades contrárias (dispensando a idéia de ‘bem e mal’, que é uma irrelevante divisão racional baseadas em referências exteriores) surge a multiplicidade. Da transa dos Deuses nasce o tudo e suas múltiplas faces. A dança cósmica e união sexual dessas duas forças são a energia matriz de tudo o que existe.

Fazendo uma analogia entre o mito pagão e a teoria de Platão, chegamos então a uma idéia básica que é justamente o principio andrógeno. Isto também se aplica à psique humana. Pois, partindo do princípio hermético da correspondência “o que está em cima é igual ao que está embaixo”, o paganismo aceita que o micro se reflete no macro para existir.

Num indivíduo, a androgenia se manifesta na sua espiritualidade energética. A Akasha (espírito) de um ser é uma centelha do ser uno que deu origem aos Deuses. Logo, ela é una e se transmuta e harmoniza entre as potencias bipolares (Animus e Anima descritos e defendidos por Carl Gustav Jung e seus sucessores). Nenhum homem ou mulher é totalmente masculino ou feminina, eles se equilibram entre os aspectos espirituais dos seus pólos energéticos, formando assim o seu Ego.

Ou seja, espiritualmente somos todos andróginos. O xamanismo de muitas culturas, em potencial, o nórdico Seidr (lê-se Záidri), faz suas viagens entre mundos utilizando um corpo astral andrógino. O que cobra um trabalho energético enorme do sacerdote ou sacerdotisa. O individuo deve trabalhar seu aspecto menos desenvolvido espiritualmente para que obtenha uma plenitude energética que possibilita a criação de um corpo para o Seidr.

Alguns vikings e outros povos da região, seguidores dos Aesir e praticantes do Seidr, não entenderam bem a sabedoria prática ancestral do povo Vanir que diz “vestir um corpo andrógino” e se tornaram os Ergi. Termo que define sacerdotes nórdicos efeminados e/ou com características de mulheres para treinar sua feminilidade. O que pode ser considerado um erro já que a androgenia vai muito além de trejeitos, vestes ou incorporações. Num nível mais comum e psicológico, um homem trabalha sua androgenia quando se abre para a sua intuição, seu lado emotivo. Uma mulher quando age de modo decisivo, firme e especula o crescimento.

Num casal de indivíduos, voltamos à Platão. A androgenia se manifesta na relação Phalus/Útero; Homem/Mulher; Ativo/Passivo que rege a sexualidade, procriação e reprodução. Temos o Homem e a Mulher, seres opostos que se completam tanto espiritualmente como fisicamente e desta relação temos a perpetuação da espécie. Mas esta sincronia está presente no casal homossexual já que numa relação homoafetiva ainda se predomina um lado mais “ativo” e outro mais “passivo”. Contudo, a reprodução não existe, obviamente.

Muito cuidado neste ponto para não fazer confusão entre os assuntos. Androgenia está muito além das sexualidades impostas pelo consciente humano. Um ato de androgenia é quando ambos deixam de apenas projetar ou agir como um receptor de energia, e começam a fazer as duas coisas simultaneamente. Não é necessariamente ser bissexual, ou homossexual ou heterossexual. Isto é completamente invariável.

É claro que os homossexuais trabalham sua androgenia física e psicológica diariamente. Eles rompem tabus e estão mais aptos para qualquer tipo de atividade, pois transcendem o preconceito de que tal sexo deve fazer tais atividades e se privar de outras.

Na magia, o trabalho da androgenia é um aspecto nosso que deve ser mais que trabalhado. Em termos de energias, em termos de atitudes e posturas e principalmente espiritualidade. Claro que há rituais e trabalhos mágicos reservados para cada sexo em específico. Pois vão depender mais do corpo do que da mente e do espírito. Mas em outros rituais em que o corpo físico for apenas um detalhe, o uso da androgenia nos faz tocar parte da plenitude de nossa essência. Traz-nos à superfície forças e sabedorias reprimidas no inconsciente.

A androgenia nos faz, como já citado, utilizar a nossa plenitude energética. Não há ativo, nem passivo, há apenas um fluxo continuo e único de uma energia totalitária. Com esta plenitude mulheres conseguem entrar em contato com o Deus Caçador que não apenas povoa seus desejos, mas também o seu íntimo ser. Homens conseguem gerar e criar coisas tão especiais como os filhos que a Deusa Mãe gera.

A magia sexual é e sempre será um meio forte de tratar da androgenia. Pelos desejos e prazeres ritualísticos, dos sentidos e das realizações nós despertamos essa energia de forma apurada.

Androgenia é uma marca da cultura pagã, deve ser trabalhada, vivenciada, explorada. Sem afetar, quando de vontade, a sexualidade do individuo.


Luan SIlva