VI
Pra se sentir adulta, Ella arrancou todas as fotos e pôsteres dos seus ídolos, passou duas camadas de tinta branca por cima das paredes multicoloridas, dos rabiscos de seus momentos mais intensos, dando um estilo basic clean. Pôs uma tela desconhecida de um pintor qualquer e passou a jurar que era uma obra rara de Munch, Van Gogh ou qualquer um destes só pra se tingir de intelectual.
Das prateleiras, tirou o que sobrou de suas Barbies, as pelúcias, as fotos em que aparece sem dentes que sua mãe tanto ama e os bibelôs coloridos junto das suas coleções de revistas teen e sobre horóscopo e simpatias. Pôs no lugar livros que nunca leu, todavia são títulos renomados e demonstram cultura. Pensou em pôr o seu exemplar de “Le Petit Prince”, mas aquilo, em sua mente já não lhe cabia. Comprou um porta-retratos com valor monetário superior ao valor sentimental da foto de um book que ela pôs nele.
Alguns jarros com flores artificiais que nunca exalarão o perfume nostálgico das fotos com as amigas e amigos, que sem estar lá ainda invade sua mente com a mesma autenticidade. Os espaços que expuseram o imenso vácuo foram preenchidos com artigos decorativos que lembram o Abapuru e outras obras plásticas que sem saber o nome ou seu contexto são incógnitas para os olhos.
Jogou no lixo vários registros, cartas, bilhetes de seu colegial e junto foram seus cadernos repletos de dedicações e mensagens dos amigos, seus três diários classificados como a vergonha do ano, os rastros do primeiro amor que Ella finge ter superado.
Refez seu guarda-roupa, de adolescente feminina feliz, ela se tornou a executiva, a séria, composta cheia de trajes e ultrajes que esbanjavam algo mais plástico que verdadeiro.
Suas jóias e bijuterias também foram doadas, assim como as maquilagens coloridas. Tudo substituído por uma máscara mais grave e sem a quebra de contraste harmônica que faz a vida ser menos dura.
Seu antigo criado mudo tinha um abajur florido hoje tem um tão apagado que mal ilumina, nas gavetas havia mil e uma coisas que se tornaram da noite pro dia: camisinhas, absorventes, um bloco de notas e uma caneta preta.
Sua cama antes de solteira e confortável se tornou uma Box king size que agredia sua coluna e fazia questão de lhe lembrar a quão solitária e frígida ela era.
Ainda havia a mesa de seu computador, uma cadeira confortável em que ela dormia vez ou outra pra se sentir abraçada.
Pra se senti adulta, Ella fez de sua fortaleza e seu mundo só seu o local que mais detestava sem nenhuma porção de quem ela era, lotada de coisas que não eram suas, onde só dormia por conta do cansaço que a dopava.
O mais triste disso tudo?
O mesmo ocorreu com seu coração.